Negros fundaram a base da culinária tipicamente brasileira
Mingau, pamonha, canjica, mocotós, vatapá, caruru, acaçá. O que tudo isso tem em comum, além do fato de serem comidas tipicamente brasileiras? Todas nasceram em mãos negras, na cozinhas da casas grandes. São pratos fáceis de comer, que dosaram a força e o exotismo dos temperos africanos para gostos portugueses. São misturas que resumem nossa pluralidade cultural ao condensar ingredientes e técnicas africanas, indígenas e européias.
Durante três séculos, toda a comida da sociedade brasileira – majoritariamente agrária – passou por mãos negras. Escravos (mulheres e homens menos aptos ao trabalho no campo) comandavam as cozinhas coloniais, inventando pratos, adicionando novos temperos e adaptando ingredientes indígenas e africanos ao paladar do “nhonhô” português.
Casa grande: palco da criatividade gastronômica negra |
Como disse Gilberto Freyre, “a negra fez com a comida o mesmo que fez com a língua”. Se em gargantas negras, Marias Antônias viraram Tontons e Marias Josés viraram Zezés, nas mesas da Casa Grande a comida ficou mais fácil, mais maleável. “A negra foi um intermediador muito forte das rupturas na cozinha da colônia”, conta a coordenadora do Núcleo de Estudos Freyrianos da Fundação Gilberto Freyre, Fátima Quintas. Por exemplo, foi ela que fez a ponte entre a mandioca nativa e o paladar português, acostumado ao pão de trigo. Para aliviar o sacrifício gastronômico do lusitano, criou-se o beiju de tapioca, entre outras mimeses do pão europeu.
Nos séculos de escravidão, a cozinha era o espaço de uma convivência mais harmoniosa dentro da estrutura profundamente opressora do regime vigente. “Por uma necessidade de ter com quem conversar, as mulheres [brancas] da casa iam para a cozinha”, conta Fátima. Essa pseudo-liberdade do negro fora do campo, aliada aos momentos de ócio que o trabalho de casa propiciava, foi responsável pelo surgimento de pratos complexos. “As horas vagas e a quantidade de pessoas para servir permitiram que os doces, principalmente, demorassem uma tarde inteira, por exemplo, para ser feitos”. Este cenário, aliado à monocultura da cana, propiciou uma doçaria complicada, que inclui manjares, bolos e tortas.
Doces elaborados demandam tempo e dedicação |
A mão que mexeu o caldo da formação culinária (e, conseqüentemente, cultural) brasileira foi negra. Por mais que as mestiçagens acontecessem por todos os lados – como é praxe no Brasil –, no final, foram os negros que meteram a mão na massa. Por isso, tudo o que o brasileiro típico come hoje, desde o arroz com feijão mais básico até a mais elaborada paella, tem um resquício das mentes criativas da senzala, que uniram o paladar europeu às tradições indígenas e africanas. Formou-se uma gastronomia leve e densa, simples e sofisticada, forte e sutil. Um paradoxo de sabores e influências, tão diverso quanto o Brasil.
SERVIÇO
- Fátima QuintasFátima Quintas é formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-graduada em Antropologia Cultural pelo Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina, de Lisboa. Pós-graduada em Museologia pelo Museu das Janelas Verdes, de Lisboa. É mestre em Antropologia Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco e coordenadora do Núcleo de Estudos Freyrianos da Fundação Gilberto Freyre. Autora dos livros "Sexo e Marginalidade" e "Sexo à moda patriarcal", entre outros.Rua Martim Francisco 529Fone: (11) 3668-6222
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